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O Giro do caleidoscópio
Mario Ramiro
Texto crítico para a individual "Humanas, demasiado humanas", na Zipper galeira, setembro de 2022

As esculturas criadas por Monica Piloni têm duas características objetivas que se revelam de imediato para quem as vê pela primeira vez, ou mesmo para quem já as conhece: o apuro técnico na execução do trabalho e o tratamento dado à representação do corpo feminino.

Tecnicamente, sua produção, formada por um conjunto de fotografias, esculturas e vídeos, vem sendo depurada com o passar do tempo, tornando-se mais complexa, incorporando o movimento programado em algumas esculturas e se desdobrando em animações que revelam uma sexualidade encenada e transmutações corporais.

Trabalhando fora de um programa estético que procura reinventar a figura humana, abstraindo suas formas e proporções, a artista representa um corpo de mulher que, inicialmente, tem uma proporção relativa ao seu próprio corpo. Ou seja, a criadora é uma medida de sua criação. Sobre isso já foi comentado que seu trabalho embaralha as noções do autorretrato quando empresta suas medidas e características físicas para a criação de cópias anatômicas, objetos de suas encenações fotográficas, esculturas e animações.

Quanto à figuração, as esculturas e vídeos são, por assim dizer, realistas, invariavelmente associadas à imagem da mulher como fetiche por suas curvas e aberturas. Trata-se, portanto, de um corpo cultural específico, de um nu, como é visto no campo da arte. A despeito desse realismo, há pouco menos de 20 anos, a artista já havia transitado pela reinvenção da forma do corpo quando, no início de sua produção, investigava a criação de bonecas, fantasmas e objetos antropomórficos, híbridos. Hoje, as mutações sofridas por suas esculturas se dão pela repetição da forma do corpo no espaço – uma solução escultórica iniciada com as Três Sombras, de Rodin – e pelo giro das peças, vistas como em um caleidoscópio que produz a metamorfose daqueles corpos.

Nessas figurações do feminino, a semelhança com o natural é uma breve ilusão que, muito rapidamente, se revela incomum. Assim como é incomum o estranhamento erótico e um tanto bizarro no trabalho da artista. Desde sua conhecida série fotográfica “No meu quarto”, de 2014 – na qual um duplo do seu corpo, desmembrado em cabeça, tronco e membros, protagoniza uma série de poses que lembram as fotografias de um crime –, seu trabalho continua criando uma tensão entre a forma, que nos captura pelo olhar, e o estranhamento dessa forma, que nos surpreende e pode até nos assombrar. Mesmo nas figurações mais amenas, como a da bailarina em pose invertida, intitulada Fonte, pode brotar um fluxo de sangue que macula a branquitude da pele e das vestes, misturando drama com beleza, tortura com dança.

O atual trabalho em exibição na Zipper, em sincronia com uma retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba, desfoca a linha entre o imaginado e o observado, quando os corpos, girando à nossa frente, nos levam de uma visão para outra, da aparência de realidade para a de certa anomalia. A visão desses corpos mutantes parece nos empurrar para as bordas do mito e do mágico, insinuando um tempo em que homens e mulheres conviviam com deidades e outras formas de vida que não apenas a humana.

Na criação da nova série, Monica Piloni nos remete à concepção das Succubus e outros seres mitológicos que evocam a figura, muitas vezes aterradora, da mulher. A mesma mulher que nas esculturas e animações provoca uma surpresa pela forma como se desdobra sobre si mesma, revelando-se sedutora, de um lado, e grotesca, de outro, como aquelas figuras meio humanas e meio míticas descobertas nas grutas romanas. Por essas referências percebe-se o quanto o mito ­– aquilo que existe numa região entre o sono e o despertar da cultura humana – ecoa na gestação desse trabalho. Daí ser inevitável associar algumas esculturas com a imagem do deus hindu Brahma, criador do universo, representado com quatro cabeças e quatro braços. No mito, Brahma cria uma mulher a partir do seu corpo e passa a segui-la, encantado, com seu olhar. Encabulada, ela tenta sair do campo de visão do deus, que, para poder observá-la aonde ela fosse, cria outras três cabeças, ampliando a cobertura do seu olhar sobre a criatura pela qual se apaixonou.

Num plano mais terreno e carnal, esse novo trabalho da artista revela um corpo feminino imponente e inteiramente aberto na exibição de suas poses, com a elevação adequada proporcionada pelo salto agulha – um dos fetiches que giram à nossa frente. É preciso ter o espírito aberto para contemplar essas imagens e esculturas, afinal, como disse o alemão Hans Bellmer, criador da Boneca (Die Puppe), “se o meu trabalho escandaliza é porque o mundo é escandaloso”.

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