Corpo insubordinado
Jurandy Valença
Artigo publicado na revista “Continente”, janeiro de 2021
Parafraseando Louise Bourgeois, quando disse que os pintores do século 18 faziam “peças de conversação”, Monica Piloni cria – como Louise chamava suas esculturas – “peças de confrontação”. A obsessão, o eixo que alicerça e move a pesquisa visual da curitibana radicada em Bruxelas é o corpo, o seu próprio corpo que é usado como molde reproduzido em escala natural e de forma realista em obras que criam situações que colocam em dúvida o limite entre o real e a sua representação. Em esculturas, objetos e fotografias, Monica reconfigura o corpo humano por intermédio de distorções, desmembramentos, omissões ou multiplicações de partes do corpo humano, no caso o seu, de forma perturbadora, muitas vezes mórbida. Monica nos fala mais da corporalidade do que do corpo em si. Sua obra questiona a sexualização da figura feminina e causa atração e repulsão, não necessariamente nessa ordem.
Como o alemão Hans Bellmer, Monica nos apresenta “um objeto provocativo”, algo imóvel, inanimado, em uma situação às vezes “passiva”, mas que mesmo informe, carrega consigo uma materialidade que desordena e perturba na sua aparência e profundidade. Em muitas de suas obras lembro de uma frase do Michel Foucault, “a profundidade não é senão um jogo e uma ruga da superfície”. E é também na superfície brilhante, lustrosa de suas esculturas que seu trabalho lembra a luz, o luxo, a calma e a volúpia que Matisse falava ao fazer referência ao lirismo romântico de Baudelaire. Mas Monica agrega mais carne, pernas, braços, cabeça e o rosto, criando com as partes figuras que se [des]equilibram, [per]mutações do corpo, fragmentos incompletos que se oferecem ao espectador belos e sedutores, e nos quais abrigam fusões, duplos, múltiplos que engendram uma operação ao mesmo tempo de [des]figuração e [re]configuração que transcende o pathos do corpo, palavra grega que significa "sofrimento, paixão, afeto”.
Brasil, Bélgica e Tracunhaém
Monica estudou escultura na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, onde formou-se em 2002. Assim que se formou, estava no Rio de Janeiro, cidade na qual não se adaptou e veio para São Paulo onde usou um atelier emprestado de amigos, que era um galpão industrial e onde morava e trabalhava. Casada com um belga que conheceu no Brasil, e morando em Bruxelas desde março, Monica chegou na cidade no mesmo dia que a quarentena começou na Bélgica. “No final de 2019 eu estava finalmente me sentindo pronta para deixar minha infraestrutura e todas as ferramentas que faziam praticamente parte do meu corpo. Estava trabalhando com uma equipe muito competente na qual confio e que poderia tocar minha produção no Brasil com meu acompanhamento a distância, e finalmente eu poderia sair e começar tudo de novo na Europa”. Atualmente Apesar da pandemia, seus novos projetos envolvem atores, músicos, cenários, figurinos e vídeo, cujos temas são sustentabilidade, industrialização da vida animal, humanidade e apocalipse. Talvez a criatividade ande na contra-mão da realidade. Talvez a falta que gerou o distanciamento social tenha motivado a ânsia pelos projetos coletivos. Quando morou no Brasil, participou de diversas exposições as quais se destacam “Nova Escultura Brasileira”, na Caixa Cultural do Rio de Janeiro; “O Colecionador de Sonhos”, no Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto (SP) ; “Trio Bienal”, no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, entre outras. É representada em São Paulo pela Zipper Galeria. E possui obras nos acervos das coleções Bernardo Paz, Instituto Cultural Inhotim, Instituto Figueiredo Ferraz e Mac/Niterói, entre outras.
Há uma peculiaridade na trajetória da artista. Ela realizou uma série de trabalhos nas olarias de Tracunhaém, município localizado na Zona da Mata de Pernambuco, muito famoso pelas cerâmicas. O local é um dos mais importantes pólos de cerâmica do estado. Além da cerâmica utilitária, que remonta ao período colonial, Tracunhaém se destaca pela arte figurativa e decorativa do barro, criando santos, anjos, bichos e figuras humanas inspirados nas imagens do cotidiano, da cultura popular e, sobretudo, da fé religiosa. Essa experiência em Recife foi a única exceção de produzir um projeto artístico fora do atelier. Enquanto eu vivia em São Paulo, cheguei a dividir ateliê com alguns artistas de Recife entre 2011 a 2013 e foi a minha primeira experiência de um ateliê coletivo. Mais tarde, mas por inflência das trocas desses artistas, surgiu uma oportunidade de desenvolver uma série de esculturas (na qual eu já estava trabalhando desde 2010, a série "Ilegais" que eu considero um dos meus trabalhos que mais interpretam o "unheimlich") mas dessa vez em cerâmica. Waldick é o nome do mestre que me acolheu na sua olaria com forno à lenha e foi onde eu desenvolvi junto com ele e seus colaboradores uma série de 50 bonecas ao longo de um mês. No mês seguinte, enquanto acontecia a secagem do barro que antecede a queima das esculturas, eu circulei por Olinda, Nazaré da Mata e Caruaru buscando soluções de ornamentos para as cabeças das bonecas, mas foi percorrendo os mercados dentro da própria cidade do Recife que encontrei uma variedade de materiais locais como palha e capim seco que trabalhei como tranças, rabos-de-cavalo e moicanos. Algumas bonecas tinham suas cabeças ocas para acomodar samambaias com fins ornamentais e mudas de Jurema Preta, cujo chá induz à experiências visionárias semelhantes às da ayahuasca, e é uma planta típica da caatinga do nordeste brasileiro. Outras cabeças, eu ornamentei com frutas locais e tradicionais. A experiência resultou em uma intervenção urbana com as Bonecas espalhadas na rua Aurora em frente ao Caranguejo na beira do rio Capibaribe.
O estranho familiar
Nas obras de Monica Piloni é possível entrever um conceito que se encontra em um texto de Freud, “O estranho” (1919), no qual ele afirma que a angústia é disparada pelo retorno de algo familiar que foi recalcado. O termo alemão “Das Unheimliche” significa um estranho que é familiar, algo inquietante que dialoga com o conceito freudiano que se refere a algo (ou a uma pessoa, uma impressão ou uma situação) que não é propriamente misterioso, mas “estranhamente familiar”, e se debruçava sobre o mal-estar que se origina dessa ruptura na racionalidade tranquilizadora da vida cotidiana. Unheimlich vem de Heim, palavra que significa 'lar', e que introduz uma noção de familiaridade, mas que é também a raiz da palavra Geheimnis, traduzida como 'segredo', no sentido de algo que é familiar ou que deve permanecer escondido. Termo este que, 40 anos depois do ensaio do Freud, em 1959, Lacan retomou ao criar a palavra extimité ('extimidade'), que dá a ideia de algo interior, algo pertencente ao sujeito, mas que é ao mesmo tempo estranho, não reconhecido como tal.
No artigo “Novas notas sobre O ‘estranho’”, André de Martini e Nelson Ernesto Coelho Junior acrescentam mais informações sobre o tema. Eles dizem que “na tradução de unheimlich para outras línguas encontramos acepções tais como estrangeiro, hora ou lugar estranho, inquietante, desconfortável, sombrio, obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco. Poderíamos dizer que a razão de ser do texto de Freud apóia-se numa ambiguidade linguística que produz um curioso efeito: heimlich, que quer dizer familiar, também significa algo secreto e oculto, o que, paradoxalmente, torna essa palavra próxima de seu oposto, unheimlich. Aos exemplos que Freud dá em seu texto podemos acrescentar outro mais próximo de nós, falantes do português: a palavra estranhar é comumente utilizada para a situação – por exemplo - em que o cão não reconhece seu dono ou alguém conhecido, ou seja, uma situação que deveria lhe ser familiar. E curiosamente, em espanhol, estrañar significa “sentir saudades”, e remete a algo familiar que não está mais presente. O estranho, unheimlich, é de alguma forma uma "subespécie" de heimlich, do familiar (que é também o oculto, o secreto).
Há nitidamente na obra de Monica Piloni questões relacionadas à sexualidade, mas ao mesmo tempo atravessadas pelo mórbido. Não há como esquecer vendo suas esculturas a beleza e a atração que exercem sobre quem as observa, há algo de sexual que, como dizia Freud, a “beleza” e a “atração” originalmente são características do objeto sexual. Entre superfície e segredo, entre mudez e nudez, a artista ao questionar a natureza da representação cria uma certa insubordinação do corpo, rompe com o corpo integral, tornando-o fragmentos, partes, restos [inter]cambiáveis e múltiplos. Vale lembrar que na escultura o fato de ser tridimensional nos aproxima mais dela, do objeto em si, ainda mais se for de corpos em escala natural e quando o molde é o próprio corpo da artista. Como ela mesma afirma, “eu acho que a morbidez evoca um certo mistério, uma nebulosidade aos corpos femininos nus em poses imponentes, com músculos tensionados, corpos flexíveis e vaginas sem pelos. Aliás, em relação às vaginas sem pelos, todas as partes do meu corpo ou do modelo-vivo devem ser depiladas para permitir o desmolde. Além disso, a pele deve ser lubrificada e isso já abre um paralelo com a sexualidade, desde o processo de produção. Eu acho que a sexualidade também pode estar no observador que se coloca como voyeur desses corpos que parecem não saber que estão sendo observados ou porque eles geralmente não possuem face ou quando possuem, elas não trocam olhares com o observador. Talvez eles também possam trazer certo desconforto. Se há um objetivo estético e conceitual que eu tenho buscado chegar como resultado no meu trabalho é alcançar o conceito de Freud de unheimlich. O inquietante, a estranheza, o assustador que repele e atrai ao mesmo tempo. [...] Eu nunca tive a intenção de fazer esculturas hiper-realistas, eu busco a artificialidade. A pele tem textura de plástico com acabamento de pintura industrial com brilho acetinado e cabelo sintético.[...] Assim como na em Bataille em sua obra "A História do Olho", minha obra também é uma revelação dos meus traumas e das experiências da minha infância”.
O feminino X o grotesco
Em um ensaio publicado em 2008, “Cindy Sherman: sobre o feminino”, Alessandra Monachesi Ribeiro discorre sobre um aspecto da artista norte-americana que dialoga com os trabalhos de Monica Piloni, que é aquele que se constitui no campo do grotesco e que estabelece uma discussão acerca da feminilidade. Nas fotografias de Cindy e nas esculturas de Monica, é como o grotesco nos arremessasse a um tipo de suspensão das ordenações existentes na realidade, contrário à ordem natural, e que nos leva ao campo do fantástico, do absurdo. Na obra de ambas de algum modo somos desterritorializados subjetivamente. Como Alessandra afirma, “como desterritorializante, o grotesco traz consigo uma dimensão de verdade, de enunciação de uma verdade subterrânea àquilo que aparenta. O absurdo, que não se explica, permanece como absurdo e inquietante, gerando um desconforto frente àquilo que brota inexplicado no seio da própria ordem do mundo, tal qual uma força que se lhe escapa e sobrepõe.”
Continuidade perdida: labirintos
Segundo Bataille, o erotismo resvala sempre em uma “continuidade perdida”, visto que ele dialoga com a morte, instaurando a experiência do limite na medida em que está diretamente ligado à relação entre interdito e transgressão. Não podemos esquecer como ele nos lembra, que o erotismo abriga a dualidade pulsional freudiana: pulsão de vida (eros) e pulsão de morte (tanatos). “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. Nas esculturas de Monica há algo de grotesco que ao mesmo tempo fascina e seduz o nosso olhar, mas que também abrigam em si algo de vulnerável, de desamparo, ao mesmo tempo carregados de sedução, não só e apenas pelo fato de representarem figuras femininas. Tal qual as fotografias de Cindy Sherman suas esculturas provocam uma reação voyeurística no observador, no público, tornando-o cúmplice, um voyeur. Monica estabelece uma fronteira tênue entre a renúncia do lugar da mulher como objeto fetiche e a denúncia desse lugar do espectador, e de seu fetiche de voyeur. Não há como não pensar em uma ação, situação performativa em seus trabalhos, seja quando exibidos em série, individualmente ou coletivamente, ela cria um cenário, um “palco de teatro” no qual um Grand Guignol é encenado, como também ocorre na obra de Bellmer.
Como lembra Wesley Peres em seu ensaio “Bataille, o pensador do corpo”, Ana Vicentini comenta em seu livro “A Metáfora Paterna na Psicanálise e na Literatura” que no teatro grego antigo havia uma divisão espacial entre a skené, lugar onde os atores trocavam de roupa para representar outro personagem, e o proskénion (o proscênio), onde ocorria a encenação visível à plateia no theatron (lugar de onde se vê). Entretanto, há um terceiro lugar, ou um não-lugar, que Vicentini propõe chamar de opíso skénion, “o atrás da cena, ou o ob-sceno: espaço das coisas impossíveis ou proibidas de serem encenadas (assassinatos, sacrifícios, suicídios, adultérios, incesto – aquilo que poderia ser de mau gosto, ou mesmo traumático), em oposição ao proskénion, lugar das ações não só possíveis mas que, necessariamente deveriam ser encenadas”.
De alguma forma é nesse obsceno que muitas obras da artista se instaura, atravessada por sexualidade, ou melhor, obscenidade. Usando uma expressão de Alexandre Rodrigues de Costa, que também traduziu poemas de Bataille para o português, e autor de um interessante livro sobre a obra do alemão Hans Bellmer, Monica instaura “uma espécie de operação de desmantelamento da representação [...] O corpo obsceno, na obra de Bellmer se estabelece, assim, como subversão de um corpo utópico, idealizado, no sentido de que ele se afirma como lugar de extravio, um labirinto no qual, ao mesmo tempo que as identidades estão enclausuradas, elas são violentamente expulsas como sobras excrementais”. Neste labirinto, Monica toma como o seu fio de Ariadne partes não mais integradas ao corpo, mesmo quando se integram fora da ordem natural. Nessa desordem, ao romper com o processo de representação do corpo, seja ele feminino ou não, quiçá um híbrido, Monica atualiza Bataille quando dizia que o ser em si é um labirinto e é impossível escaparmos dele, visto que não estamos nele, mas somos ele.
Alegoria e simulacro
Em sua alegoria sobre o corpo, a artista leva consigo literalmente o que significa a palavra, que fala sobre outra coisa, ou coisas. Monica, de certa maneira, cria simulacros que evocam o divinatio, que Michel Foucault falava, o que constitui o conhecimento em profundidade, que vai de uma semelhança superficial a outra mais profunda, e que junto ao cognitio manifestavam o consensus do mundo que as fundamentava, opondo-se ao simulacrum, à falsa semelhança. Foucault já apontava que é necessário “restituir os direitos da aparência, devolver-lhe solidez e sentido [...] submergindo a aparência, rompendo os seus ligamentos com a essência, aparecerá o acontecimento, expulsando o peso da matéria, aparecerá o incorporal”. Ele também nos lembra que Platão opunha essência e aparência, “mundo de cima e mundo de baixo, sol verdadeiro e sombras da caverna”. Tema que Deleuze retoma quando dizia que a essência separa “do mundo da aparência, maus simulacros”, e que complementando o que ele fala acerca de uma de suas obras primas, “O anti-Édipo”, “nele não tem mais nem altura nem profundeza, tampouco superfície. Lá tudo acontece, se faz, as intensidades, as multiplicidades, os acontecimentos sobre uma espécie de corpo esférico, ou de quadro cilíndrico: corpo sem órgãos”.
Tendo como molde seu próprio corpo, Monica cria esculturas idênticas a si mesma, é o mesmo, a mesma, mas também é um outro, uma outra. Entre a interioridade e a exterioridade, entre converter e perverter, Monica vai criando seu vocabulário visual que parece carregar tatuado a famosa frase de Paul Valéry, “o mais profundo é a pele”. De cara se estabelece um paradoxo, quiçá um chiste, no qual reside uma condensação na qual dois campos de significados se fundem causando surpresa. Afinal, como aquilo que está na superfície, sobre algo, pode ser o mais profundo? Nos próximos anos, décadas, Monica continuará a enunciar verdades ocultas, subterrâneas, que brotam na aparência, na superfície e corpo de sua obra. Simulacros, corpos sem órgãos, mas vivos, realizando uma transgressão de formas, dilacerando a semelhança.