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Simetrias Dissidentes
Allan Yzumizawa
Texto crítico para o catálogo da individual "Simetrias Dissidentes", no MAC Sorocaba, agosto de 2022

As produções artísticas de ponta da década de 1960 encontravam-se diante de dois polos opostos: por um lado, moviam-se em direção a uma autonomia da arte conforme a lógica formalista do modernismo; por outro, assumiam uma natureza textual diante da importância e do protagonismo da linguagem (ao exemplo dos trabalhos de arte conceitual). Essa tensão entre a autonomia das formas e das composições visuais e as combinações de signos da cultura de massa regia o conflito entre o minimalismo e a pop arte. Contudo, por meio das produções artísticas advindas da segunda onda do feminismo, a partir da década de 1980, além das discussões de teóricos pós-coloniais e decoloniais, temos o retorno da figura humana como interesse de representação visual. Essa representação vai além de um corpo neutro fenomenológico, mas compreende-se como um corpo marcado por seu gênero, por sua identidade e/ou por sua localização específica – não à toa, a importância do conceito lugar de fala, apresentado pela filósofa Djamila Ribeiro¹, como forma de pôr em xeque a pretensão ocidental do discurso universal.

É nesse contexto que podemos localizar o conjunto de produções da artista Monica Piloni. Para além do interesse em trazer a representação do corpo feminino, suas esculturas, de modo geral, não almejam se encontrar com a superfície do hiper-realismo. Antes disso, assumem seu lugar de suspensão da figura representada, da qual deslocam o padrão social do corpo, possibilitando novas visualidades e reflexões. Nem realistas, nem surreais. Trata-se de objetos de arte que suspendem a visualidade do espectador, criando dissensos quanto às percepções individuais – e é nesse desencontro, ou desarranjo, que o trabalho de arte se efetiva. O filósofo Jacques Rancière caracteriza esse movimento como elemento que designa a arte política: aquele que traz a partir do dissenso, novas visualidades e formas das quais reconfiguram as estruturas estéticas de uma comunidade.²

Talvez o elemento de destaque que traz a potência do dissenso seja o gesto do espelhamento. Presente em grande parte do conjunto artístico de Piloni, ele tem como consequência a presença de uma visualidade simétrica – valor estético extremamente importante para as composições das tradições clássicas ocidentais. A artista, entretanto, atualiza seu uso, contrariando o alcance da harmonia compositiva ao trazer a desfiguração de corpos. Esse gesto é facilmente observado em suas esculturas, como A Leitora (2019), Siamesas (2016) e Casal (2005), entre tantas outras. O espelhamento é presente mesmo em trabalhos produzidos com outras técnicas, como o exemplo de Ímpar Vídeo (2013) – em que um vídeo em preto e branco apresenta um frame espelhado e simétrico, no qual é possível observar um corpo em movimento. Esse gesto realizado, sobretudo em representações de corpos femininos, atribui um deslocamento do real. Denuncia a intensidade da violência que ocorre no cotidiano de diversas mulheres – e é dessa forma que as produções artísticas desdobram sua potência, suas reflexões pertinentes à cultura de uma comunidade em seu tempo e espaço.

Esse desentendimento do real com o traumático é visível na série de fotografias No Meu Quarto (2014). Nesse conjunto de imagens, a artista aproveita algumas partes de suas esculturas – as quais representam pedaços de corpos, como braços e cabeça – rearranjadas e envoltas num tapete, de forma a construir uma composição que remete a um corpo feminino morto. Piloni fotografa esse corpo em preto e branco e, com o uso do flash, constrói uma imagem que se refere diretamente ao imaginário coletivo das fotos de homicídios que circulam em jornais. Por mais que a imagem nos faça acreditar que a representação do corpo morto seja verdadeira, ao mesmo tempo, inconscientemente, desconfiamos dela, percebendo um desconforto. A fotografia, nesse sentido, passa a ser muito mais violenta com o próprio observador; ela se torna uma imagem deslizante – ou deslocada – das que são proliferadas nas e pelas mídias.

As produções hiper-realistas almejam alcançar o real, ao mesmo tempo que se escondem do trauma com sua ansiedade discursiva: cacofonia. É preciso, portanto, esse deslocamento do real como recurso estratégico de acesso – é nesse espaço que a ficção acaba tocando a realidade. Os corpos construídos por Monica Piloni não possuem o desejo de enganar nossos olhos, como um trompe-l’oeil, mas querem assumir um posicionamento de autonomia no que diz respeito aos seus possíveis discursos. Nesse caso, nós, observadores, somos estimulados a aprofundar as camadas que tais esculturas nos impõem – como um véu que esconde o que existe atrás. Porém, o que está por detrás é algo que está dentro de nós, e, por isso, basta um mergulho interno para que possamos responder às perguntas apontadas pelas obras da artista.


[1] RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
[2] Tais discussões são elaboradas em diversas publicações do filósofo. Como de destaque, conferir: RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

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