Humano. Infra-humano. Quase Eu.
Diógenes Moura
Texto crítico para individual "Ímpar, Ambas", na galeria Laura Marsiaj, em julho de 2013
O alarme foi disparado. Estamos em chamas. Ímpar é o duplo em metamorfose, triplo: seios, cona, matéria. Mais que isso: e a formação como um feto alterado. Hiper-realista. Uma mulher que beira o sobrenatural. Imperfeita/perfeita. Em fibra de vidro, contemporânea. Em bronze, clássica. Ambas. Tão perfeita que jamais poderá ser real: “Lembra, corpo, não só o quanto foste amado.”¹ Autorretrato porque será preciso respirar. “Eu seria o modelo vivo mais próximo, mais prático. Numa cidade onde não fui formada. Estou diante de mim mesma, especialmente com esse temor sobrenatural: seu status animado, inanimado, duvidoso”. Monica Piloni então seria/será a matéria desse seu próprio outro. Como sempre foi. Freud? Ego? Não: quase eu. Antes surgiram as bonecas como objeto único. Onde está o meu rosto? Três vezes uma mesma face que não existe. Anatomia distorcida, ainda em busca de algo além da moral. Boneca sombra. Boneca fantasma. Todas ilegais ². Seria porque há um drama acima da religião? Ou seria porque perdemos o rosto e mesmo assim precisamos respirar?
Antes ainda vieram as formas distorcidas, côncavas, convexas. Estamos em chamas. IdEgoSuperego. O corpo circense mais além do que o gesto yoga. Corpos olímpicos que se entrelaçam. Tornam-se únicos, expostos entre sexo e afeto, e sexo mais uma vez. E afeto sem nome mais adiante: Lembra, corpo? A anatomia outra. Nada acadêmica. O desconforto nas mãos da artista. A pose simétrica. Obsessão. O silêncio interrompido. Opostos que se espelham. Três formas iguais que se encaixam. “Eu sou o modelo vivo mais próximo”. A coerência para chegar à quarta dimensão. Mais uma vez, antes, a bailarina. O corpo-repertório fragmentado, como um crime ou uma ressurreição. A artista desfaz para em seguida recompor. Um quase eu, em fragmentos. Ou sobre a cama, como se “apenas” fosse uma fotografia. Tão perfeita que jamais poderia ser real. Repartida para quem deseja vê-la através da vitrine. Aí, sim, inscreve-se o diálogo: quem vê o quê? Não seria esse o corpo de todos nós? Não seriam essas próteses oculares os olhos de cada um de nós?
Mas não. A artista segue ainda mais adiante. Em tamanho natural, modelo vivo, ergue as mãos. Sua Ímpar, Ambas é uma quase-síntese do que vem desenvolvendo nos últimos nove anos. Quase porque ainda irá se modificar em seu esquema de pensamento e matéria, em quarta dimensão. Será reinterpretada mais uma vez e quem sabe o que será feito com os seis, os braços que já não existem, a face que continua imperceptível: tudo equilibrado sobre três muletas. Nada mais simbólico. Estamos em chamas. Um ponto central visto de cima onde a cabeça encontra o ânus, em linha reta, fundamental. O corpo vertical amparado antes do chão. Ímpar. Ininterrupto como fluxo entre humanidade e espelhamento. Como num filme. Como numa penetração. Uma mulher dividida, mas com extremidades próprias. Sem olhos, sem lábios, mas que faz parte de um estudo sobre os mistérios da criação. Monica Piloni constrói em Ímpar, Ambas uma figura humana tripla, par, ímpar, política. Solitariamente inversa. Que levita sobre muletas, sem rosto, para sussurrar que estamos em chamas, mas que precisamos respirar.
[1] Konstantinos Kavafis, Poemas, Ed. Nova Fronteira, 1990, 189 págs.
[2] Referência do autor às série Ilegais (2010), Côncavo e Convexo (2004) , IdEgoSuperego (2011) e Bailarina (2007), de Monica Piloni.