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O todo sem a parte não é todo, a parte sem o todo não é parte
Érica Burini
Texto crítico para o catálogo da individual "Simetrias Dissidentes", no MAC Sorocaba, agosto de 2022

Um sentimento estranho, hipnotizante e vertiginoso é despertado em nós quando vemos a obra de Monica Piloni. São várias as linguagens exploradas pela artista, mas é principalmente a escultura – seja ela física, virtual, fotografada, montada sobre base ou instalativa – que constitui o seu trabalho. Há um olhar especial sobre a figura humana – sobretudo sobre si mesma, que é modelo para várias das suas composições, inconformadas com o gênero do autorretrato. Partes são subtraídas, membros são replicados ou disjuntos completamente, rompendo com a constituição biológica do corpo humano. É inventada uma nova gramática para a natureza, enquanto é desfigurada a ideia de identidade individual.

Ainda assim, são guardados indícios de humanidade nas figuras que a artista cria, como se elas oferecessem ao mundo material formas de coisas que são somente sentidas ou imaginadas, ou seja, que são vividas em outro plano, que pode ser mental, psicológico ou ficcional. A superfície das peles possui uma textura lisa, e sua cor é morta, ou melhor, nunca viva, como os tons de bege acinzentado, preto plástico, branco leitoso, cobre ou dourado. O que nos aproxima são os cabelos, perucas de textura muito próxima do real, bem como os contornos precisos, que captam dobras de pele, músculos e tendões.

Há uma afinidade profunda com uma noção formulada por Sigmund Freud em um texto célebre, datado de 1919. Das Unheimliche, termo de difícil tradução e que, nas edições brasileiras, recebe as versões O Inquietante (Companhia das Letras), O Estranho (Edição Standard) e, mais recentemente, O Infamiliar (Autêntica Editora). A aproximação com a psicanálise ocorre de maneiras variadas na obra de Piloni, que desbrava o território do inconsciente com suas criaturas, predominantemente femininas, desejantes e desejadas, ou também com os títulos das obras, que acenam para esse universo ao encarnar os agentes interativos do aparato psíquico – Id, Ego e Superego. Nesse escrito particular de Freud, os sentidos desta palavra plástica, unheimliche, são investigados sob vários ângulos, sob seu lado direito e em seu avesso, sendo concluído que, por vezes, ela significa uma coisa e, em outras, quer dizer o contrário. Afinal, o pai – com todas as implicações do termo – da psicanálise resume: “O inquietante é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”¹

Um olhar mais aproximado sobre os materiais que compõem algumas das obras de Piloni revela elementos apropriados, comumente utilizados por pessoas, e outros que parecem estranhos ao uso doméstico. A composição desses corpos remete aos mundos cosmético e industrial, e nos mostra inesperados pontos de toque entre os dois. A leitora, por exemplo, é formada por fibra de vidro, PLA, pintura acrílica, poliuretano, madeira, cabelo sintético, unhas postiças, capas de livro e base. O segundo material, nomeado por uma sigla, refere-se a um polímero biodegradável, o poliácido láctico, que, por sua característica sintética e termoplástica, substitui o plástico em diversas aplicações. Na medicina cosmética, uma formulação parecida, o ácido poliláctico, é usada em procedimentos de preenchimento facial, por ser um bioestimulador de colágeno; é aplicado sob a pele com uma seringa, enrijecendo e modelando a fisionomia. A obra de Monica Piloni atenta para uma qualidade particular da vida contemporânea, da alternância entre o domínio, o controle, a autonomia e a liberdade sobre o corpo e a aparência. Somos matéria viva e esculpida em procedimentos físicos e químicos, fundamentalmente estéticos, amplificados na experiência feminina pela cultura ocidental e capitalista.

A artista utiliza, ainda, próteses oculares para compor suas esculturas – as que mais se aproximam de ser sua sósia ou seu duplo, como aquelas fotografadas em No Meu Quarto. Nessa série, vemos duas situações distintas. Uma são as composições em preto e branco, com alto contraste e sem título, que remetem a registros de cenas de crime antigas e, simultaneamente, à sensualidade peculiar da obra de Hans Bellmer. Não vemos um rosto, apenas cabelos revoltos, e o volume do corpo é dado por um cobertor enrolado, repousado sobre o assoalho de madeira. A outra situação, com obras nomeadas E Por que Haverias de querer minha alma na tua cama?, E eu pergunto: por quê? e Na tua cama ou na minha alma?, possui cores de um tom bege frio. Ela nos faz sentir em um sonho lúcido, em um mundo próximo ao real, mas perturbado. O corpo retratado é esfacelado. São pares de pernas e braços destacados do tronco, e uma cabeça separada do pescoço, em composições análogas à constituição humana. O corpo desmembrado é lânguido e de um erotismo ardente, espalhado sobre uma cama ou um sofá. Martela na memória a frase de Bellmer: “[...] o corpo é comparável a uma frase que convidaria você a desarticulá-la, para que se recomponham, mediante uma série de anagramas sem fim, seus verdadeiros conteúdos”²

No entanto, a criação de obras de arte a partir de sofisticadas imagens de bonecas ou de manequins não é privilégio dos homens. No extremo oposto do desejo de Bellmer, de criar uma parceira irresponsiva, à disposição de seu bel-prazer, as esculturas de Piloni são experiências de desorganização dos papéis fixos e de ampliação dos papéis limitados associados às mulheres. É por isso que seu trabalho não consegue ser capturado inteiramente por referências como a psicanálise de Freud e o erotismo surrealista de Bellmer. Há algo fundamental que escapa por fendas, frestas e brechas desses referenciais e se encontra mais bem definido em uma outra árvore de referenciais. Trata-se de uma dimensão de interioridade sobre a questão, uma perspectiva interna do problema. As criações da artista não são submissas ao male gaze, ao olhar masculino, que encarna o patriarcado branco, heterossexual, cisgênero e normativo. Elas são demonstrações materiais dos processos de construção da (auto)imagem da mulher, parte primordial da experiência feminina, que contempla procedimentos subjetivos, de adequação a personagens, padrões de comportamento e arquétipos, bem como procedimentos físicos como a mutilação e outras modificações corporais, intervenções químicas e cirúrgicas, a moda e a cosmética. Desse modo, entendemos que a mulher é, por excelência, o ciborgue de Donna Haraway, híbrido de máquina e organismo, do natural e do fabricado e, sobretudo, um ser desafiador da norma.

Pouco mais de seis séculos separam a produção de Monica Piloni daquela de Cristina de Pisano, versão abrasileirada do nome da poetisa e filósofa veneziana que trabalhou na França. A condição dessa mulher foi raríssima, de produção do seu próprio sustento por meio da escrita. Em sua obra-prima, A Cidade das Damas, a autora é a personagem principal e a leitura de um volume, As Lamentações de Mateolo, deixa-a inconformada com o tratamento dado às mulheres.

Em um momento tênue entre o estado desperto e o sonho, aparecem três alegorias: a Retidão, a Razão e a Justiça. E então começa o jogo de indagações e respostas entre ela e as damas. Os questionamentos são tanto incisivos e pertinentes – por exemplo, por que as mulheres eram excluídas do sistema judiciário? – quanto surpreendentemente atuais – perguntas sobre a autonomia dos corpos femininos e do seu desejo, frente aos abusos sexuais, e também sobre a igualdade de competências e habilidades entre os gêneros, faltando apenas oportunidades para que as mulheres ocupem determinadas posições na sociedade. A autora e personagem, então, é destinada a edificar uma cidade, desde a fundação até as muralhas e os telhados, apenas com o saber e a força das mulheres. É enumerada uma lista enciclopédica de mulheres – entre personagens históricas, míticas e bíblicas – que se mantinham na obscuridade.

A utopia tem como locus possível a Cidade das Damas. Se a autora ítalo-francesa encontra refúgio nas letras, Piloni mostra que o campo da criação, como um todo, pode ser um solo fértil para a semeadura de uma terra na qual há múltiplos papéis para as mulheres, na qual elas podem ser protagonistas de sua história.

No entanto, o moralismo fundante da escrita de Pisano, situada no contexto da Baixa Idade Média, é a diferença crucial em relação à obra de Piloni. Suas esculturas não representam esquemáticas donzelas indefesas nem megeras. São figuras dotadas de complexidade e sobre as quais não recai julgamento. O vídeo Succubus, por exemplo, mostra a metamorfose de uma mulher tripartida, calçada com saltos arrebatadoramente altos – como vemos em outras obras da artista, tal qual Oops, com centralidade –, sobre a qual é derramada uma substância que lhe cobre inteira, adere à sua pele e se transforma em um traje de látex, remetendo às práticas sadomasoquistas, sobretudo da dominatrix. A Súcubo, referenciada em distintas mitologias e na cultura popular, é um demônio de aparência feminina que aparece nos sonhos de homens para seduzi-los e roubar-lhes a energia vital. A primeira delas é identificada com Lilith, que encarna a postura insubmissa e indomável da mulher através dos tempos. Esse espírito toma a criação de Monica Piloni, que tem a liberdade e a autonomia como linhas mestras, sobretudo no que diz respeito ao poder implicado no domínio do sexo.


[1] FREUD, Sigmund. Obras completas – Volume 14: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 331.
[2] BELLMER, Hans. Pequena Anatomia da Imagem. Tradução de Graziela Dantas e Marcus Rogério Salgado. São Paulo: 100/Cabeças, 2022, p. 45.

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