Ciclo Insondável
Mario Ramiro
Texto crítico para a individual "Ciclo", na Zipper galeria, maio de 2019
Ao final da segunda década deste século não deixa de ser notável o interesse pela representação da figura humana no campo da arte, depois das muitas investidas contra a arte figurativa e seus vínculos com a realidade objetiva e o realismo. O corpo, seus gestos, necessidades e desejos se tornaram um elemento-chave nas questões sociais e políticas mais prementes de nossa época, e isso se reflete no imaginário dos artistas contemporâneos. O interesse pela figuração pode ser também consequência da presença dominante do corpo nas plataformas sociais, na fotografia, no cinema, na performance, no ativismo. São os corpos que cada vez mais performatizam as intervenções nos espaços das cidades e nos ambientes de mídia, que buscam o reconhecimento de suas diferenças e igualdades, negociando ou lutando por uma nova concepção do próprio corpo e por novas definições do self. Mais do que uma retomada dos valores da arte figurativa, provenientes das tradições da pintura e da escultura, o que temos agora é uma prática artística conectada aos mesmos princípios que orientam as vanguardas de nossa sociedade em seus questionamentos das noções tradicionais de gênero, sexualidade e processos de subjetivação.
É neste espírito de época que o trabalho de Monica Piloni parece evocar as forças que atuam sobre os corpos, por um entrelaçamento entre aparência e essência, fato e ficção. A beleza dos corpos femininos na obra da artista é notável, embora eles pareçam ter sofrido algum tipo de mutação, ou efeitos de uma tensão, deixando à mostra um estado de desequilíbrio de formas bem modeladas, mas abertas a algum tipo de desvio. O corpo feminino é sempre o de uma personagem que se espelha em si mesma, espécie de eco que insiste em reverberar no próprio corpo, como se essa personagem fosse um desdobramento de alguma interioridade que não nos é dada a conhecer, e dela o que vemos é sempre uma superfície dobrada, redobrada, rebatida.
Ao olhar para o conjunto da obra da artista, somos confrontados com uma espécie de gabinete de curiosidades, povoado por representações que explicitam uma fragmentação e um esquartejamento da beleza num universo formado por uma personagem muitas vezes sem face, de cujas aberturas não vertem órgãos ou vísceras, mas um incômodo vazio. Neste conjunto, as figuras revelam algo um tanto apreensivo e vagamente erótico. Os corpos femininos estão calçados num objeto símbolo do fetiche, que os tornam vulneráveis e instáveis, pois sobre um salto daquela altura nenhum corpo pode correr nem fugir, se necessário. O caminhar se apoia num equilíbrio precário, tornando-se refém de uma imagem, e a própria artista admite certa tensão sob a capa de glamour que irradia de seu trabalho. Afinal, algumas esculturas revelam uma espécie de vazio onde supomos haver uma plenitude das formas. Quando decidimos procurar por uma interioridade, um núcleo com uma identidade, o que encontramos é uma ausência semelhante ao conteúdo inexistente de um livro que só se mostra por sua capa, espécie de biombo que oculta um corpo ausente. Mas curiosamente é este mesmo vazio que dá sustentação às figuras que parecem levitar no ar, como se sustentadas por uma força invisível que torna aqueles corpos ainda mais frágeis e leves.
A busca por significados numa obra como a de Monica Piloni nos faz acreditar que ela esconde algo para ser decifrado, como se um enigma envolvesse a própria figura da artista, já que muitas de suas esculturas foram feitas a partir de um autorretrato. A tendência a encontrar hipóteses de leituras cercando sua figura é tentadora, como igualmente seria aproximar seu trabalho das questões de afirmação feminista pulsantes em nossos dias. Mas os artistas, no entanto, nunca se deixam capturar tão facilmente. Em representações de corpos com amputações cirúrgicas e limpas não se deve esperar uma pista fácil para a leitura do seu conjunto. Impera certo silêncio e tensão nas peças que, ao mesmo tempo, sugerem atração e repulsa pelo que temos à frente. A beleza rapidamente se converte em monstruosidade, como no contorno suave e delicado do torso de uma modelo, que se duplica e se avoluma no espaço à frente de um espelho, replicando uma realidade já desdobrada e rebatida sobre si mesma, transformando o que seria um torso clássico numa massa de carne que parece apenas focada no desejo pelas partes mais erotizadas daquele mesmo corpo. O reflexo – que sempre associamos a uma imagem plana na superfície de um espelho – foi, nessas esculturas, duplicado na estrutura de um corpo feminino, gerando uma imagem de siamesas. Como numa mitologia própria, essas entidades siamesas são ligadas muitas vezes pelo próprio cabelo. E este parece ter um protagonismo nos trabalhos de Monica Piloni, nos quais, via de regra, ele reafirma ou oculta um mistério. É com o cabelo entre as pernas que uma das esculturas dessa exposição oculta a vagina bem esculpida de um corpo que pende no espaço preso pela boca, como que fisgado por um anzol proveniente de um plano insondável. Em outras de suas obras ocorre uma profusão de bocas e genitálias, mãos que agarram e cabelos que se dobram sobre si mesmos, sugerindo um êxtase aos pedaços, uma flutuação de corpos incompletos num gozo contido. Mas tudo isso são conjecturas a que esse trabalho nos induz – como se nosso julgamento pudesse lançar luzes sobre as sombras do mistério produzido por essas esculturas.